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domingo, 9 de outubro de 2016

U2: escrevendo o futuro da música com o lançamento de 'Songs Of Innocence' - Parte 01


Com 'Songs Of Innocence', o U2 escreveu um dos episódios mais quentes da indústria discográfica em 2014, levantando reflexões sobre novos caminhos para a distribuição e o debate sobre a necessidade de pagar a música que se faz e consome. O jornalista Nuno Galopim da Blitz de Portugal, reconstitui e analisa o significado daquela que poderá ser a mais arrojada investida de sempre de Bono e companhia.

Uma das mais míticas (e consequentes) frases de Bono num palco, ao lado do U2, foi proferida em 31 de dezembro de 1989 no Point Depot, em Dublin. Chegava ao fim uma turnê que tinha acompanhado o álbum 'Rattle And Hum' e, apesar da dimensão global alcançada pelo grupo nos últimos anos, havia uma vontade de não manter aquilo. No fim da noite, Bono explicava à plateia que aquele era o fim de qualquer coisa para o U2 e que teriam "de ir embora... e sonhar tudo de novo". Assim o fizeram, reinventando com novo brilhantismo o caminho que os levaria a 'Achtung Baby', em 1991. Não seria, contudo, experiência única, a de querer então sonhar tudo outra vez. A carga pessoal e íntima de 'Songs Of Innocence' (2014) e o modelo inesperado (e inédito) que projetou o seu lançamento não são mais senão outros frutos dessa mesma necessidade de parar, sonhar, reinventar, que faz com que, 35 anos depois de terem gravado o seu primeiro disco, o U2 seja um grupo com dimensão global capaz de dividir opiniões e lançar um dos mais quentes debates que a indústria discográfica assistiu nos últimos anos. Entre os prós e os contras, os encantados e os irritados, o U2 fizeram do lançamento de 'Songs Of Innocence' (mais que do álbum em si) um dos episódios do ano que agora termina.
A história pública de 'Songs Of Innocence' começou na tarde de 9 de setembro em que, em Cupertino (Califórnia), Tim Cook, o sucessor de Steve Jobs à frente da Apple, chamou o U2 ao palco num dia em que revelava novos produtos, entre eles um novo iPhone e o Apple Watch. Tocaram "The Miracle (Of Joey Ramone)", canção que abria o tracklisting de um novo álbum que, mesmo sem sabermos, já teríamos ele caso fôssemos um dos mais de 500 milhões de utilizadores do serviço iTunes. Segundo a Apple, 33 milhões de pessoas tiveram acesso ao disco na semana de lançamento. Ao final de um mês, 81 milhões já tinham ouvido ele, dos quais 26 milhões tinham feito o download. Então foi anunciado que, em outubro, depois de uma janela de cinco semanas durante a qual o disco seria exclusivo de uso da Apple, chegaria uma versão física "convencional" em CD e vinil, com canções extras. O disco atingiu, assim, em poucas semanas, o mesmo alcance que 'The Joshua Tree', álbum de 1987, levara mais de 20 anos a conquistar, observaria Bono em novembro ao New York Times.
Depois de apresentada a notícia na convenção da Apple, o U2 se juntou a outros músicos e figuras do mundo dos negócios para um almoço no Hotel Los Gatos, em Silicon Valley. E aí, em jeito de discurso, Bono explicou que a internet definiu uma relação com a música ao longo da última década, e o que tinham acabado de fazer era algo como "dar uma volta nisso".
As reações começaram a chegar pouco depois. E entre elas uma sucessão de críticas violentas que, como lembra um artigo publicado pela Rolling Stone, mostrou jornalistas na área das tecnologias usando expressões como spam, malware e dad rock. Um texto no Washington Post descrevia o rock'n'roll como sendo agora "junk mail distópico". E um outro, no New York Times, comentava a falta de consentimento. Dave Navarro, no Twitter, comentou: "isso quer dizer que não temos escolha?", indagava em tom de crítica. E o guitarrista Keith Nelson afirmava que o U2 tinha, assim, deixado uma mensagem dizendo a todos que a música era uma coisa gratuita.
Em causa estava não o ato da oferta gratuita, mas sim o modo de colocar automaticamente o álbum no iCloud de todos os clientes do serviço iTunes. Bono chegaria a comentar a operação como tendo sido um erro, num chat no Facebook com fãs. Posição que comentaria com um "oops" à Rolling Stone, desculpando-se depois. Esse pedido de desculpas ganhou entretanto observações na imprensa. "Estou trabalhando já num pedido de desculpas... para a desculpa", comentou com humor em entrevista à edição mais recente da Mojo. Ao New York Times Bono explicou contudo que o que fez não foi bem desculpar-se. Apenas não queria deixar uma jovem no Facebook incomodada naquela ocasião.
Numa sessão de perguntas e respostas com fãs, Bono contou que tinha tido "uma ideia bonita" e que talvez se tenha deixado entusiasmar, como relatou o New York Times. O músico explicou ali que os músicos são "pródigos" a agir assim: "uma gota de megalomania, um toque de generosidade, uma pitada de autopromoção e um medo profundo de que estas canções nas quais colocamos o que havia nos nossos corações ao longo dos últimos anos não fossem escutadas". E alertou ainda: "há muito barulho por aí", admitindo que eles mesmos tinham sido "barulhentos" a chamar as atenções.
Bono comparou à Rolling Stone o fato de o disco ter entrado diretamente nos telefones de algumas pessoas ao ato de colocar uma garrafa de leite na geladeira das pessoas sem que os seus donos o pedissem. Mas acrescentou então que "foi uma espécie de acidente" porque "o leite poderia ter ficado na porta da casa". Também em declarações à Rolling Stone, Adam Clayton explicou que as grandes companhias digitais "cruzam fronteiras", notando que "têm muito mais poder que uma corporação tradicional". Do ponto de vista do U2, o que fizeram, como explica, foi fazer chegar o álbum a tantas pessoas quanto o possível. Já ao Guardian, o mesmo músico explicou que o plano não era o de ser "controverso", lembrando que "no mundo atual há muita conversa fiada, e assim, para conseguir fazer algo", teme que o U2 esteja destinado "a ter de fazer muito barulho" por si mesmos.
Num estilo mais telegráfico e menos justificativo, Larry Mullen Jr. respondeu à Rolling Stone que não se preocupou o mínimo com as reações que surgiram na ressaca das revelações em Cupertino. Tal como acontecera com a campanha dos iPods dez anos antes, o baterista admite agora que tinha dúvidas. Mas, como ali depois observa, "nem era preciso pensar muito: eles queriam comprar o nosso disco e oferecê-lo às pessoas". The Edge admitiu por sua vez ao Guardian ter também tido dúvidas sobre o modelo tanto antes como depois do lançamento, sublinhando contudo que era "a coisa certa a fazer" e que era "uma oportunidade que só surgiria uma única vez para quem quer que fosse", mas que não crê que "alguém o queira fazer outra vez".
Perante as críticas, que chegaram a comparar, como sublinhou a Time, este lançamento a uma "heresia", The Edge comenta ali que o modelo usado é na verdade "muito subversivo, muito punk rock, muito disruptivo". Bono, por sua vez, comparou nessa mesma reportagem a relação entre a Apple e a banda ao tipo de ligação de mecenas com artista que unia os Medici a Miguel Ângelo, na Florença do século XVI.
Bono é claro quando diz que não se importa de ser disruptivo. Ou, como ele mesmo diz à Rolling Stone, aquilo a que Lee "Scratch" Perry chamaria "o grande incomodador". Todos os seus heróis, explica, "eram assim", se bem que ele mesmo reconheça que pode ter "um gene irritante adicional", o que o "ajuda nesta demanda". Numa reportagem do Guardian, que encontrou o U2 após ensaios em Cote d'Azur, Bono conta que há 30 anos já estavam incomodando as pessoas, lembrando que "o papel da arte é o de dividir".
Haverá talvez outras razões a mais para explicar tamanha intensidade de reações. Bono conta na Rolling Stone que "é muito fácil olhar para o U2 e reparar que não há junkies no grupo, pelo menos pelo que se vê, não há ninguém morto ou morrendo e eles parecem se dar bem uns com os outros e estão apaixonados pelas suas mulheres. Já chega! Afaste-nos!"... Nos bastidores da Web Summit, conferência sobre tecnologia que teve lugar em Dublin, Bono explicou ao New York Times que o U2 sempre se preocupou com as questões de marketing, mesmo antes "de as pessoas olharem para as bandas como marcas". Na conferência, como descreve o jornal, Bono defendeu que o U2 prefere "ser os primeiros de uma nova ninhada a ser os últimos de uma ninhada moribunda". Disse que tinham previsto como poderia ser a trajetória do seu álbum e que não tinham gostado da ideia de que "poderiam estar fora das paradas de vendas em seis semanas". Mesmo reconhecendo que para alguns tenha sido impopular, o acordo com o iTunes é um dos feitos que mais orgulha o grupo.
À revista Mojo, que deu capa ao U2 na sua mais recente edição, Bono brincou ao lembrar que "um dos grandes crimes contra a humanidade" (referindo-se ao modelo de lançamento do álbum) é um "erro honesto", e deixou claro que não vai perder o sono por causa deste assunto. E para ele é caso arrumado.
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